Centenário do nascimento do ilustre historiador lamecense A. de Almeida Fernandes [1917-2017]
Consagra à investigação todos os momentos da sua vida, de labor incessante, perdendo o conceito de presente numa espécie de túnel da História, à boa maneira do príncipe renascentista Nicolau Maquiavel… De madrugada, entro no meu “santuário”. Deixo o pó e visto a minha roupa de gala. E assim decentemente vestido, visito as linhagens fundamentais da nobreza portugalense no repovoamento do Norte do País e na fundação da Nacionalidade[iii], e os grandes da Ordem de Cister. Eles me recebem com afabilidade e eu me alimento com o pão que é, em verdade, o meu e para o qual nasci. Não me acanho de falar-lhes; pergunto pelos motivos dos seus atos, e eles com humanidade me respondem. Durante horas não sinto sofrimentos, esqueço todas as ignomínias, não me lembro da pobreza e nem a morte me aterroriza[iv].
Jovem de muitos livros, Almeida Fernandes (AF) realiza trabalhos que cedo denunciam o seu especial interesse pelos primórdios da História de Portugal. Com uma educação eclética, aprende Latim, Inglês, Alemão, Grego e Árabe, disciplinas essenciais no estudo da Toponímia e Antroponímia, e, igualmente, Música, compondo e tocando vários instrumentos, como órgão, banjo, clarinete e piano. Após frequentar o Colégio de Lamego, estuda em Coimbra, onde completa os Preparatórios de Engenharia Civil. Já no Porto, licencia-se em Engenharia Geográfica e Ciências Pedagógicas. Desde os vinte e dois anos até ao final da sua vida, AF devota-se ao estudo da História de Portugal, dos séculos V-XIII, dando à estampa as suas primeiras obras, que versam primordialmente personalidades como Egas Moniz, Conde D. Henrique, D. Pedro, Conde de Barcelos e, ainda, as grandes famílias medievais.
Se na biblioteca de seu pai recebe os seus primeiros conhecimentos, é a sua terra natal, Lamego, como uma das mais ricas na História Medieval Portuguesa, que o influencia na sua luta pela verdade histórica, no seu sentido de liberdade total[v], tocando em assuntos que deveriam ser conhecidos “por todos os que quiseram, e ora queiram, ser historiadores de Lamego – eruditos, aqueles, de tais convicções que quasi só por si se alheiam, em parecida ascensão, às culminâncias de onde se transfiguram à vista dos ingénuos a seus pés prostrados[vi]… Além do mais, seria imprescindível trazer à luz do dia um trabalho sobre Lamego na História Geral, iniciado por AF, mas, infelizmente, ainda não publicado[vii]. Frequentador da Torre do Tombo, da Biblioteca Nacional e de outros Arquivos e Bibliotecas, copia por mão própria, grande número, documentos, até hoje inéditos, bem como todo um conjunto de apontamentos, anotações, inventários… e na sua cabeça regista os números dos documentos, as páginas sobre certo assunto e os nomes das personalidades da História Medieval, com as suas ligações linhagistas[viii].
Homem erudito e de espírito e saberes multifacetados, inspirado no ilustre linguista, filólogo, arqueólogo e etnógrafo José Leite de Vasconcelos e pelo distinto Abade Vasco Moreira, marcantes no seu percurso como historiador, não esquece o contributo de outras ciências na sua construção historiográfica. Com um saber verdadeiramente transversal, onde se cruzam a História, a Geografia, a Filologia, a Etimologia e a Onomástica (Antroponímia e Toponímia), consubstanciado num profundíssimo conhecimento do Latim bárbaro que o torna num paleógrafo de exceção, permitindo-lhe beber história na raiz das palavras, a sufixos, prefixos e radicais, aos étimos pré-romanos, latinos, gauleses, celtas e germânicos (suévico-visigodos) e árabes[ix], transforma-se, naturalmente, num grande estudioso alti-medievalista, legando um verdadeiro contributo à ciência histórica nacional.
Em 2004, dois anos após o falecimento de AF, a Fundação Dona Mariana Seixas institui o Prémio A. de Almeida Fernandes – História Medieval Portuguesa, com o objetivo de o homenagear e incentivar a novos estudos sobre as temáticas desta longa e complexa época. Embora alheio a honrarias e mercês, é facto que AF dava importância às manifestações de reconhecimento da solidez dos seus estudos e honestidade intelectual. A sua grandeza, como Historiador e como Homem, é reconhecida porquanto é condecorado com a Ordem do Mérito, grau de Comendador, entregue, em 2007, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Lamego, bem como com a atribuição das Medalhas de Ouro dos municípios de Lamego e Tarouca, passando a figurar na toponímia destas duas cidades, com várias ruas e um monumento votivo ao seu distinto nome. Destaca-se, igualmente, o Colóquio A. de Almeida Fernandes organizado e promovido, em 2009, pela distinta Academia Portuguesa da História.
O seu ofício de historiador, solitário e abnegado, com a humildade dos grandes, e de rigorosa investigação e de espírito científico, em que minuciosamente se alicerçam os seus estudos, desagua num impressionante caudal de produção histórica que perde a visão acrítica do passado e vê-se depurada de antigos mitos ideológicos, que com o devir dos séculos ganhariam feição de verdade histórica, e que, por tal, importa valorizar e difundir nos anais da História, dignificando o seu perfil, o seu acervo bibliográfico e a sua memória, preservando-a e reconhecendo-a publicamente[x].
Autor de uma vastíssima obra e justamente apreciada por quem a conhece, que revela uma vastíssima cultura e espírito crítico argumentativo, constituindo no seu todo verdadeiros documentos-monumentos da História Medieval portuguesa[xi], AF publica, sem assinar, a parte mais vasta da sua obra, colaborando no jornal Comércio do Porto e em publicações lamecenses, como o Semanário Beira-Douro, onde divulga a cronologia da fundação do mosteiro de Salzedas; ou no Boletim da Casa Regional da Beira-Douro, com os seus preciosíssimos Tópicos da História Dúrio-Beirã[xii]; e no Jornal a Voz de Lamego, onde perpetua o último vali de Lamego, Echa Martim. Com obra consagrada nos cânones enciclopédicos, contabiliza um milhar de entradas, de sua autoria, na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, e colabora, ainda, nas revistas Bracara Augusta, Revista de Guimarães, Cadernos Vianenses e Caminiana, bem como na revista Beira Alta, em 1978, onde publica a polémica tese que defende o nascimento de D. Afonso Henriques em Viseu e não em Guimarães, e que «continua incontestada», segundo o académico João Silva de Sousa. Colabora, ainda, com a insigne Sociedade Martins Sarmento, que lhe publica parte de sua obra de investigador, e com o jornal ovarense João Semana, onde trava uma famosa controvérsia com o notório historiador José Mattoso, a propósito do Castelo da Feira[xiii]. Publica, ainda, poesia e surpreende a sua arte para o retrato e gravura, bem como a autoria de músicas de cânticos religiosos à Virgem Maria, poemas sinfónicos, missas e, inclusive, uma ópera[xiv].
Em suma, o historiador português que esteve mais próximo da revelação dos enigmas que continuam a envolver o nascimento de Portugal[xv], Almeida Fernandes, inaugura um singular e inédito paradigma de construção historiográfica, alicerçado numa ímpar erudição e capacidade hermenêutica, com grande sentido de época e interpretação histórica em termos de processos científicos, manifestada na completa independência de apologias, desvinculação das escolas históricas e liberdade total na procura da verdade numa “história que envelhece”, consubstanciada numa escrita de estilo próprio, até então impraticada, patenteada numa exímia correção e de discurso direto, vigoroso e contundente, de talentoso escritor, historiador, professor e poeta[xvi]. Por tais apreciações, passados 100 anos do seu nascimento, a História Medieval portuguesa inclina-se ao prestígio do historiador lamecense A. de Almeida Fernandes.
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[i] Cf. Prefácio de José Hermano Saraiva. In A. de Almeida Fernandes - Portugal Primitivo e Medievo, 2001, p. 5.
[ii] Joaquim Veríssimo Serrão - Homenagem a A. de Almeida Fernandes no 86.º aniversário do seu nascimento. Viseu: Fundação Mariana Seixas, 2003, p. 4.
[iii] A. de Almeida Fernandes - Portugal Primitivo e Medievo, Tarouca, Associação da Defesa do Património Arouquense, 2001.
[iv] Adapt. de Eduardo Lourenço – À margem: tempo e literatura. In Jornal de Letras. Ano XXXVII, n.º 1229, 2017.
[v] Flávia de Almeida Fernandes - Biografia do Historiador Medievalista Comendador
Dr. A. de Almeida Fernandes [em linha]. [Consult. 10 nov. 2017]. Disponível em http://triplov.com/A-Almeida-Fernandes/Biografia/index.htm
[vi] A. de Almeida Fernandes - Echa Martim, o último vali de Lamego. Tarouca: Santa Casa da Misericórdia, 2012.
[vii] Câmara Municipal de Tarouca - Atribuição da medalha de ouro do Município de Tarouca ao Dr. Armando de Almeida Fernandes. Tarouca: Câmara Municipal, 1994.
[viii] Op. cit. (7).
[ix] João Silva de Sousa - Conferência proferida em Lamego, a 16 de Fevereiro de 2012, ao assinalar-se o 10.º ano do falecimento de A. de Almeida Fernandes [em linha]. [Consult. 13 nov. 2017]. Disponível em http://cadernosdahistoria.weebly.com/geografia-documental-de-armando-de-almeida-fernandes-ndash-um-ineacutedito.html
[x] João Maia - Homenagem a A. de Almeida Fernandes no 86.º aniversário do seu nascimento. Viseu: Fundação Mariana Seixas, 2003, p. 7.
[xi] António Sérgio, A. de Almeida Fernandes, Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 1958, vol. 38.
[xii] Disponíveis na Biblioteca Pública Municipal de Lamego
[xiii] Veja-se Manuel Pires Bastos - Armando de Almeida Fernandes – Consagração nacional do medievalista português, 2009. Disponível em http://artigosjornaljoaosemana.blogspot.pt/2011/02/armando-de-almeida-fernandes.html 09.
[xiv] Op. cit. (5)
[xv] Op. cit. (1), p. 5.
[xvi] Alberto Abreu - Homenagem a A. de Almeida Fernandes no 86.º aniversário do seu nascimento. Viseu: Fundação Mariana Seixas, 2003, p. 8.
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